Viver é também estar preparado para situações difíceis."violência"
12 de julho de 2010
A cidade fortificada(TERESA CALDEIRA.Jornal "Folha de São Paulo, )
A cidade fortificada
TERESA CALDEIRA
(Jornal "Folha de São Paulo,
São Paulo é hoje uma cidade de muros. Amedrontados pelo aumento do crime violento e descrentes da eficácia da polícia ou da Justiça, os moradores procuram se proteger o mais que podem. Erguem muros, reforçam as grades e fechaduras, compram armas, consomem as mais diversas tecnologias de segurança e contratam guardas privados. Também saem menos, mudam-se para condomínios fechados, trocam as compras e o lazer que lhes façam usar as ruas pelos shoppings e, se podem, abandonam os transportes coletivos para se mover apenas com seus carros. Para completar, tendem a apoiar medidas violentas para lidar com a criminalidade, como a pena de morte muitas vezes confundida com execução sumária pela polícia e a atacar os que defendem os direitos humanos.
Em suma, os resultados desses esforços de proteção podem ser resumidos da seguinte maneira: para fazer face à violência, os moradores de São Paulo se aprisionam, adotam soluções privadas de proteção e progressivamente abandonam a esfera pública. No entanto, tudo indica que esse tipo de reação alimenta o ciclo da violência, em vez de contrapor-se a ele. O que poderia ser efetivo para interromper esse ciclo é a retomada e o fortalecimento da esfera pública, algo que os cidadãos de São Paulo parecem resistir a entender.
Frente ao medo e ao aumento da criminalidade violenta, é inevitável que as pessoas tentem se proteger. O problema é que as soluções privadas e violentas em geral não apenas não são as mais eficazes, como também podem ter resultados contrários aos esperados.
O porte de armas é um exemplo claro nesse sentido. Em países em que existe tradição de autoproteção e a população civil vê o porte de armas como um direito, como é o caso dos EUA, a taxa de homicídios per capita tende a ser até 10 vezes mais elevada do que a de países em que o número de armas entre os cidadãos é baixíssimo, como no Japão e na Europa Ocidental.
Todos os dados evidenciam que o aumento da criminalidade violenta no Brasil está associado ao uso de armas de fogo. O número de armas registradas anualmente cresceu 510% na região metropolitana de São Paulo entre 1983 e 1991. Como todos sabem, esse aumento não reflete o número de armas junto à população, já que muitas delas são mantidas ilegalmente. Como resultado, a proporção de homicídios provocados por arma de fogo no Brasil, que era de 15% do total de homicídios em 1980, em 1990 já havia dobrado e passado para 30% do total. O ponto mais grave disso tudo é que muitas das vítimas são mortas por suas próprias armas!
Historicamente, quando se observa a evolução dos homicídios em países do Ocidente, duas coisas ficam absolutamente claras.
Primeiro, a taxa de mortes violentas declinou sistematicamente desde o início do século 19 até pelo menos o final dos anos 60 (na Europa, caiu do patamar de 80 homicídios por 100 mil habitantes para menos de 4 por 100 mil; nos EUA, caiu para em média 10 por 100 mil hoje no Brasil está ao redor de 20 por 100 mil, mas nos anos 70 esteve ao redor de 10 por 100 mil).
Segundo, esse declínio tem a ver com processos essencialmente não-violentos, como o fortalecimento do sistema judiciário, a difusão da educação pública, o controle das pulsões individuais, o fortalecimento dos direitos civis e do respeito pelos corpos dos outros, a expansão da cidadania e da democracia e a modernização do espaço público, o qual foi progressivamente aberto para a circulação de todos. Foram processos de fortalecimento da esfera pública democrática, da cidadania e do que se pode chamar de civilidade (que inclui a tolerância e o respeito pelo outro) em detrimento das pulsões e poderes privados que fizeram cair radicalmente a violência.
Teresa Caldeira é professora de antropologia na Unicamp (Universidade de Campinas) e na Universidade da Califórnia, Irvine (EUA).
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Um comentário:
Não existe regra mágica que garanta o controle da violência. Democracia política, por exemplo, não é um remédio certeiro. Se assim o fosse, não haveria como explicar porque a criminalidade violenta nos EUA é tão mais alta do que na Europa. Além disso, seria difícil entender porque no Brasil a criminalidade violenta cresceu tanto depois da democratização. Mas se o estudo histórico comparativo serve para indicar alguma coisa, isto é que a ênfase no respeito aos co-cidadãos e o interesse na preservação da paz em um espaço público usado intensamente estão na raiz do controle da violência.
Não é o abandono da esfera pública, mas a sua apropriação pelos cidadãos de todas as classes sociais, que permite criar uma melhor qualidade de vida e controlar a violência. Não é a sofisticação das barreiras (físicas, sociais e simbólicas), mas a sua derrubada que permite criar um espaço social seguro e fazer frente ao medo. Faz muito mais sentido o movimento "Reage São Paulo" que, frente à violência, usa a praça pública para exigir paz e justiça, do que todas as vociferações pela pena de morte. Quando os cidadãos de todos os grupos sociais perceberem que têm que sair de trás dos muros, se apropriar do espaço público e como co-cidadãos organizar a segurança de todos, quem sabe o problema da violência comece a encontrar o seu encaminhamento.
Teresa Caldeira é professora de antropologia na Unicamp (Universidade de Campinas) e na Universidade da Califórnia, Irvine (EUA).
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